Condensar e contar a história de música, dança, folia e cultura da maior festa popular de rua do mundo não é uma tarefa fácil, mas a Casa do Carnaval da Bahia, em Salvador, consegue fazê-lo com maestria. De janeiro a maio deste ano, o espaço já recebeu mais de 28 mil turistas, um crescimento de 68% em relação ao mesmo período do ano passado. Mais da metade vem de outros estados do país, mas o número de visitantes baianos também tem crescido.
Este ano, dias antes do início do Carnaval de Salvador, o museu atingiu um recorde de público, mais de 1.300 pessoas em um único dia. Romilson Vieira Selles, 24 anos, é mediador do museu há quase e dois anos, o mais antigo no local. Para ele, ter batido esse recorde é um representativo da qualidade e dedicação envolvidos na criação e manutenção da Casa do Carnaval. “Na alta estação, geralmente temos de 100 a 300 visitantes por dia aqui. Então, do nada, esse número cresce em mil pessoas, ficamos muito impressionados”, conta. No período do Carnaval, o museu funcionou em esquema especial. A Casa do Carnaval funciona das 10 às 18h, de terça a domingo. A entrada é R$ 20 (inteira) e R$10 (meia), residentes de Salvador também pagam meia.
Só este ano, cerca de 10 mil baianos já visitaram a Casa do Carnaval, um aumento de 43% em relação a 2022. Para Romilson, o crescimento é reflexo de uma busca por conhecer a própria cultura. “Cada vez mais, esse espaço tem se tornado mais um espaço para quem é de Salvador, quem é da Bahia. Não que não fosse antes, até porque não houve nenhuma mudança, mas a gente percebe uma maior procura, acho que até pela sensação de pertencimento mesmo, de identificação com a própria cultura”, refletiu.
Estrutura – Inaugurado em 2018, o primeiro museu do Carnaval no Brasil promove uma experiência única da história da folia, por meio de conteúdos audiovisuais e interativos, abordando desde a origem da festa, nos entrudos lusitanos do século XVIII, passando pelas alterações e proibições elitistas sofridas, até a criação do trio elétrico (brevemente, fobica) em 1950 e o crescimento exponencial da festa, que, hoje em dia, atrai mais de 2,7 milhões de pessoas, nos sete circuitos principais, durante os dias de festa.
Localizada na Praça Ramos de Queiroz, no Pelourinho, a Casa do Carnaval está a poucos metros do Terreiro de Jesus e da Praça Castro Alves, locais icônicos para o Carnaval de Salvador. Administrado pela Secretaria de Cultura e Turismo de Salvador (Secult), tem curadoria do artista e designer baiano Gringo Cardia, juntamente com o reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), professor doutor Paulo Miguez, especialista em Cultura e Carnaval da Bahia, além de um amplo grupo de artistas e pesquisadores como Jonga Cunha e Bete Capinan.
O espaço tem dois pavilhões expositivos, com mais de três horas de conteúdo audiovisual relacionados à festa. No térreo, as salas “Origens do Carnaval” e “Criatividade e Ritmos do Carnaval” contam a história e evolução do carnaval narradas por artistas que criaram e foram criados pela festa. Na sala de entrada fica a biblioteca da Casal do Carnaval. O acervo conta com nomes como Zélia Gattai, Juarez Paraíso, Carybé, Nelson Cadena e J. Cunha, que também assina os painéis fixados na parede e do teto da entrada.
O titular da Secult, Pedro Tourinho, aponta a importância de espaços culturais de memória como a Casa do Carnaval, que refletem a representação e identificação de um povo. “É um espaço que perpassa a história de uma festa não só de Salvador, mas da Bahia, e que mostra personagens e momentos que são intrinsecamente relacionados à folia. No primeiro museu do Carnaval do país, é contado o surgimento dos trios elétricos, os caminhos que os blocos afro trilharam para se fortalecer e ganhar o devido lugar de destaque e poder, passando pelo fortalecimento de ritmos afro-baianos como o samba-reggae, o axé e o pagode na história da festa baiana”, destacou.
“O espaço cultural também adentra nos pormenores da gestão da festa, desde a atuação do poder público até os trabalhadores informais, que têm uma atuação crucial na movimentação da economia da festa”, completou o titular da Secult.
Experiências temáticas – Na sala “Origem”, brilhantes máscaras carnavalescas, bonecos pierrôs e uma escultura topográfica de Salvador contextualizam a história que está sendo contada nas telas. Já na “Criatividade e Ritmos do Carnaval”, os conteúdos abordam especificidades do Carnaval, como o trio elétrico, os blocos afro, a exportação do carnaval para o mundo e os diversos ritmos que compõem o a festa.
Também há um espaço para Carnaval do interior, como em Jacobina e Maragogipe, e a Micareta, além de um painel exclusivo dedicado aos artistas que têm construído visualmente e artisticamente o carnaval, como Juarez Paraíso, Manoel Araújo, Bel Borba, J. Cunha e Alberto Pitta. Para acessar o conteúdo audiovisual do museu e ter a experiência completa, ao visitante é dado um dispositivo móvel e fones de ouvido, que permitem sincronizar o conteúdo a ser apresentado nas telas.
No segundo pavimento do museu está o Cinema Interativo, onde os visitantes podem dançar e tocar as músicas que são apresentadas nas telas. Nas salas A e B, o objetivo é que as pessoas conheçam mais sobre artistas, afoxés e blocos de trio. Cantoras como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Baby do Brasil falam do Ilê, Olodum, Harmonia, Psirico e bandas como Eva, Jamil, Cheiro de Amor. Na outra sala, Carlinhos Brown, Antônio e Camila Pitanga e Xandy vão falar de artistas como Luiz Caldas e Igor Kannário e de Asa de Águia e Chiclete com Banana.
Carnaval de muitas origens – No museu, a história do Carnaval da Bahia é contada por diversas vozes, de Moraes Moreira a Saulo, passando por Margareth Menezes e Claudia Leitte, estendendo a narração a artistas plásticos natos do carnaval como Alberto Pitta. O cantor Gerônimo é quem inicia o percurso histórico da folia momesca, narrando os primórdios da festa, ainda na época do Brasil Colônia e Império, com os entrudos lusitanos que tomavam as ruas.
Márcia Short conta como acontecia o carnaval da elite, e Alberto Pitta fala do nascimento dos afoxés, no século XIX, com referências diretas à ancestralidade e ao candomblé, com os toques de agogôs e atabaques. O artista também traz a reestruturação do carnaval do povo, que tinha sido proibido pelas autoridades a pedido da elite, que não suportava o caráter popular da festa.
Os primórdios da festa são contados pelo cantor Gerônimo, que descreve como acontecia os entrudos lusitanos do Brasil Colônia e Império, festa de rua que acontecia na época da Quarema e que foi proibida, pois o alvoroço e agonia da celebração, que incluía guerra de água perfumada em às vezes, malcheirosa, desagradavam a elite. A festa, então, sofre influência do Carnaval francês, apoiado pelas autoridades e pela elite, uma proposta “refinada” para os privilegiados que ocorria em teatros e clubes. Gradativamente, nos anos 20 do século passado, cortejos dos clubes sociais começaram a invadir a Rua Chile. Desfilando fantasiados em bondes que passavam na rua, esses cortejos tinham um objetivo: exibir o luxo dos ocupantes.
Mas o Carnaval popular não ficou apagado nesse meio tempo. É a voz grave do artista plástico Alberto Pitta, criador do bloco Cortejo Afro e um dos maiores artistas visuais envolvidos no Carnaval de Salvador, que narra o trajeto dos afoxés do século XIX e o carnaval popular. No final de 1800, a contragosto das forças policiais, o Carnaval de Salvador, construído pelo povo negro já se destacava. Fortalecidas pelo som de atabaques e agogôs, agremiações carnavalescas populares, negras e indígenas começaram a ser fundadas.
Com a rua Chile ocupada pela elite, os afoxés e o povo cortejavam em fila indiana por locais como o Terreiro de Jesus e a Baixa dos Sapateiros. A ligação direta com os terreiros de candomblé e a evidência da ancestralidade levaram os afoxés a serem proibidos por uma portaria, em 1905, só voltando a serem permitidos quase uma década depois.
Já na virada para a década de 50, eventos importantes colaboraram para o fortalecimento do carnaval de rua de Salvador. Ainda na sala Origem, um protagonismo merecido é dado à Praça Castro Alves. O trecho entre o final da Avenida Sete de Setembro e o início da rua Chile, marca, em 1950, o início do que se tornou a maior festa de rua do mundo. Inspirados no fervor que a apresentação do grupo de frevo “Vassourinha” causou nos foliões, Adolfo Antônio do Nascimento (Dodô) e Osmar Álvares Macedo invadem a rua Chile a bordo da Fobica, um Ford 1929 equipado com oito caixas de som, tocando marchinhas no ‘pau elétrico’, instrumento que tinham criado na década de 40 e que se tornaria a guitarra baiana. No ano seguinte, a dupla convida Temístocles Neto e nasce o Trio Elétrico.
Tendo o carnaval carioca como inspiração, em Salvador, nos anos 50, começa o movimento de escolas de samba. O enredo dessa fase da folia é narrado por Mariene de Castro. O auge das escolas de samba soteropolitanas é nas décadas de 60 e 70, tendo em seus enredos temas como a Bahia, Caymmi, Jorge Amado e Mãe Menininha do Gantois. Despontam grandes nomes do samba baiano como Batatinha, Nelson Rufino, Roque Ferreira e Edil Pacheco. Os blocos “de índio” da década de 60, como os Apaches do Tororó e Caciques do Garcia, atraíam a juventude. Inspirados nos filmes de velho-oeste americanos, saíam pintados em cores específicas para identificação e se intitulavam silks, pele vermelha e comanches.
Em 49, nasce o maior afoxé do mundo, Filhos de Gandhy, inspirado nos ideais de paz do nacionalista indiano. Tendo Oxalá como patrono, o Ghandy já foi reconhecido pelo Guiness Book como o maior afoxé do mundo, e colaborou na reestruturação do carnaval popular que vai passar a ter, cada vez mais, manifestações de candomblé e da cultura afro-baiana. Nos anos seguinte, afoxés como Filhos do Congo e Filhas de Olorum se juntaram aos cortejos do carnaval, tendo o número de afoxés crescido desde então.
Na segunda sala, “Criatividade e Ritmos do Carnaval”, a riqueza visual da festa, as mudanças que aconteceram no trio elétrico e na folia nestes mais de 80 anos, a micareta e o Carnaval no interior do estado e as expansões da festa a nível internacional são contados por vozes como Ivete Sangalo, Regina Casé e Carla Visi. Além do conteúdo audiovisual, a sala tem um acervo de figurinos icônicos usados por cantores da música baiana como Daniela Mercury, Carla Perez e Luiz Caldas.
A salvação do povo brasileiro – Um dos painéis é dedicado inteiramente ao trio elétrico, protagonista do Carnaval de Salvador. Quem conta a história e evolução ninguém mais ninguém menos do que Moraes Moreira, primeiro cantor a subir num trio, o de Dodô e Osmar, em 1970. Antes disso, só música instrumental saía pelas caixas de som do trio. Os anos que se sucedem consolidam o casamento cantor+trio que se mantém até hoje. Os Novos Baianos, com Baby, Paulinho Boca e Pepeu Gomes e Luiz Caldas no trio Tapajós.
Os grandes artistas que criavam e projetavam os trios também têm seu espaço de destaque. Orlando Tapajós, que hoje, nomeia um dos circuitos da folia, cria a “‘Caetanave” em 1972, uma homenagem a Caetano Veloso, que voltava do exílio em Londres na época da ditadura militar. É neste momento que Caetano declara que “o trio elétrico é a salvação do povo brasileiro”. Nos anos 80, Pedrinho da Rocha também se destaca pelos designs de trios e dos abadás dos blocos, que ganharam mais força com bandas como Eva, Chiclete e, posteriormente, Asa de Águia.
Ainda na década de 70, uma força pungente da ancestralidade baiana surge na festa, os blocos Afro. Em 1975, desfila pela primeira vez, o mais belo dos belos, Ilê Aiyê. Desfilando o tema de Paulinho Camafeu, a partir daquele Carnaval, todos passariam a saber “que bloco é esse”.
A emergência dos blocos Afro está diretamente ligada aos movimentos diaspóricos Black Power, os Panteras Negras nos EUA e a independência de países africanos na década de 60 como Costa do Marfim, Benin, Somália e Nigéria. Os tambores do Olodum começam a ressoar nas ladeiras do Pelourinho em 79, criando um movimento único com as coreografias dos percussionistas. Em Itapuã nasce o Malê Debalê, com o nome inspirado nos negros mulçumanos que lutaram na Revolta dos Malês. Surgem também O Muzenza do Reggae, o Bankoma e, posteriormente, Didá, formada unicamente por mulheres.
Para além da festa na capital, o museu também conta a história da festa em cidades do interior como Maragogipe, Juazeiro e na Praia do Forte, onde ainda há a tradição dos “caretas”, inclusive, com oficinas de moldagem de máscaras carnavalescas. A Micareta, que nasceu em Salvador, no início dos anos 20 como uma alternativa ao Carnaval, que passou por um rápido declínio, hoje é forte em cidades do interior como Feira de Santana e Jacobina. “Os Cão de Jacobina”, desde os anos 40, contam a história da batalha entre o bem e o mal, com homens pintados de preto e chifres remetendo ao diabo numa luta com o anjo São Miguel.
No vasto mundo cultural, musical e de tradição que é o Carnaval da Bahia, a Casa do Carnaval, com um acervo denso, promove uma experiência única pela história e evolução da festa. Mais que um equipamento cultural, a Casa do Carnaval é um espaço de pertencimento dos baianos e foliões, que conta as diversas faces da sua história e de todos os elementos que a constituíram para ser, hoje, a maior festa de rua do mundo, arrastando milhões de pessoas anualmente.
Foto: Jefferson Peixoto/Secom